Janeiro a Outubro de 1987 -
A Louca Cavalgada
Logo no começo de 1987, a subida precipita-se, com o efeito Janeiro (habitual nos
mercados altistas dos anos 80) e rumores de excelentes resultados das empresas. Afluem
também muitos capitais estrangeiros à nossa Bolsa (durante 1987 eles dominarão mais de
50% do volume de transacções). Se, em 1986, a Bolsa tinha subido 69%, em 1987 subirá
280% entre Janeiro e Outubro! Depois do crash de 20 de Outubro a Bolsa desce muito, mas
ainda fecha o ano a ganhar 59%. Veja aqui a evolução do índice desde Janeiro a Outubro.
Note a correcção de cerca de 20% a partir de 4 de Junho (logo após a vitória do PSD
com maioria absoluta em fins de Maio; pode considerar-se a pequena alta de Junho como o
1º ombro de um gigantesco cabeça e ombros).
Durante todo o ano de 1987 sucederam-se as subscrições e (mais para o meio do ano) as
OPV's, que fizeram o número de empresas aumentar de 40 para cerca de 150. Mas os capitais
sociais postos à venda continuavam a ser reduzidos, pelo que as cotações não paravam
de subir, sob a pressão da procura. O limite de subida era de 5% por dia e ele era
atingido muitas vezes. As acções que mais subiam eram as que já tinham subido muito
anteriormente e que toda a gente apontava como caras. As baratas ninguém as queria
(embora tivesse havido uma alta repentina de muitas acções de segunda linha como a
Lisnave, Mabor, Papelaria Fernandes e F.Ramada nos últimos meses antes do crash). Subiam
mais as Marconi, CISF, Caima (um recorde avassalador: dos 6500$ em 1983 para os 380 contos
(!) em Abril de 1987, depois uma incorporação de reservas de 14 novas acções por uma
detida que, naturalmente, fez descer a cotação para os 25000$, subindo depois novamente
dos 25 para os 227 contos! Uma multiplicação por 500 desde 1983...), Sonae, BPI, Inapa,
Sofinloc e Imoleasing. Em Junho dá-se a subscrição da companhia de seguros O Trabalho
ao preço de 8000$. Eu participei nela e consegui obter 110 acções, através de várias
pessoas. Mal acabou a subscrição, já havia transacções fora de Bolsa a 30 contos e,
depois da admissão à cotação, a cotação atingiu os 80 contos. Ganhos semelhantes
alcançavam-se nas outras OPV's e subscrições.
Entretanto floresce o mercado fora de Bolsa, onde as cautelas de acções são
transaccionadas antes de os títulos definitivos serem admitidos à Bolsa. O volume
negociado na Bolsa em cautelas excede o referente a títulos definitivos. Transaccionam-se
cautelas nos cafés e restaurantes que circundam a Bolsa. Todas as acções se
transaccionam nestes mercados auxiliares, incluindo as de empresas não cotadas como BCP,
Ocidental, Torralta, Compal e outras. Chegam a registar-se casos insólitos de negócios
envolvendo acções de micro-empresas, como garagens, pequenos supermercados e lojas
familiares, transformadas à pressa em sociedades anónimas, com o intuito de impingir as
acções a compradores incautos. Em Maio há um pequeno frisson, com a moção de censura
apresentada ao governo PSD pelo PRD (Partido Renovador Democrático) que provoca uma queda
de 20% na Bolsa. Mas o PSD ganha as eleições com maioria absoluta, e volta tudo a subir
mais moderadamente, para tornar a corrigir depois. Assim, de Maio a meados de Agosto o
mercado pouco sobe, limitando-se a consolidar os ganhos obtidos até aí (mais de 100%
desde o início do ano, mais de 1400% desde Janeiro de 1983!
Lembro-me de, nessa época, ser comum uma pessoa fixar a cotação de uma empresa,
esquecê-la durante uns meses e depois, ao voltar a olhar para a mesma acção, vê-la uns
50 ou 100% acima... O que produzia frustração, por se não ter comprado essa acção; a
melhor estratégia, durante esse ano, foi comprar blue chips e aguardar... Mas poucos o
fizeram sistematicamente. Em vez disso, 99% das pessoas fez muitas transacções, tomando
mais valias amiúde e investindo o produto de venda noutras acções logo a seguir, o que
raramente ou mesmo nunca batia o mercado (mais certo era o que se vendia continuar a subir
e o que se comprava ficar algum tempo sem subir!).
Nessa altura muitos comentaristas começaram a avisar o mercado sobre a iminência de um
crash. Acácio Gomes escreveu uma vez qualquer coisa como isto: "Os investidores
estão todos a ganhar; até um dia...". Alguém escreveu "Os títulos são
bombas ao retardador que explodirão nas mãos de quem os possuir". O conhecido
investidor Jorge Figueiredo previu o crash e vendeu tudo antes, mas demasiado antes: terá
vendido vários meses antes de Outubro, não usufruindo da enorme escalada de Agosto e
Setembro. Os avisos, porém, não arrefecem o mercado. As pessoas só pensavam em ganhar.
Investir na Bolsa era igual a ganhar. Só se ganhava. Ninguém, mesmo ninguém, estava a
perder. Os que ganhavam gabavam-se dos ganhos aos amigos o que atraía cada vez mais
gente.
Finalmente, em Agosto e Setembro, o mercado passa para além da razão. A partir daí, os
avisos à navegação tornam-se mais frequentes e contundentes, como as crónicas de
Miguel Esteves Cardoso e a famosa frase "gato por lebre" de Cavaco Silva. Miguel
Esteves Cardoso escreve, entre outras coisas que "Agora já não saímos com a
Isabel, a Marina ou a Helena, em vez disso apaixonamo-nos pela Sofinloc, Locapor,
Transbel... Em qualquer restaurante só se ouve falar de Sofinloc, Marconi... Está tudo
Portloc!". De uma outra vez escreve "Não se ria destes investidores (ao lado
uma foto de investidores no recinto da Bolsa); estão todos ricos".
Então, as cotações começam a subir 5% por dia, sem parar. O gráfico é um arco
parabólico apontado para o céu. Todas as OPV's esgotam, com procuras muito superiores
às ofertas e entrando na Bolsa 3, 4 ou mais vezes mais caras que o preço de venda. Os
empresários que vendem essas participações fazem fortunas de milhões de contos de um
dia para o outro, muitas vezes com empresas tecnicamente falidas. É nessa altura que
muitas dezenas de novas empresas são admitidas. Algumas das mais importantes blue-chips
admitidas em 1987: BCP, Sofinloc, Leasinvest, BES Investimento (na altura ESSI),
Lusoleasing, Euroleasing, Chemical (na altura Banco Manufacturers Hanover), O Trabalho.
Outras empresas interessantes admitidas nesse ano: Madeirense, Somague, Soares da Costa,
Engil, Mota & Companhia, Salvador Caetano, Proholding (na altura Proadec), Sonae
Indústria (na altura Novopan), Nobre, Valouro, Fisipe, Papelaria Fernandes, Dom Pedro,
Mundicenter, Reditus, Soja, Cipan. A maior parte destas, depois da OPV, entravam na Bolsa
com ganhos de 100 a 200% à cabeça.
Nas cervejarias ouve-se falar de Bolsa na mesa do lado. A globalização, nessa época,
não estava tão avançada, a sociedade da informação era na cervejaria e não num forum
da Internet (mas produzia os mesmos efeitos). É esta conversa jovial, em que a serotonina
elevada dos vencedores fabrica os seus sorrisos (ou risos alarves...) que seduz a
assistência. Ninguém resiste a tantos relatos de fortunas feitas ou meio feitas. Muitos
pais de família respeitáveis que, até aí, tinham investidos apenas 500 contos,
investem mais 10 mil. Muitas novas pessoas chegam à Bolsa, pedindo apenas para comprar
acções, quaisquer que elas sejam. Lembro-me muito bem de ter visto, em Setembro, amigos
meus que nunca tinham investido, começarem a fazê-lo. As cotações estão a níveis
incríveis, dezenas de vezes acima dos valores contabilísticos e com PER's de 50 para
cima. A situação lembra, obviamente, o Nasdaq em 1999-2000 (e o movimento cabeça e
ombros é semelhante). Veja a lista seguinte. Está ordenada por ordem decrescente do Year
To Date de 1-1-1987 a 31-8-1987. A Caima está a subir, no ano, 1915%, a Sonae 515%, a
Capital Plus (Mabor) 451%, etc. Os PERs (2ª coluna) estão, na sua maioria bem acima dos
50 a muitos acima de 100.
Em Outubro, as pessoas mais atentas começam a vender. Isto também não tem merecido
suficiente atenção dos analistas. O crash foi em 20 de Outubro mas as cotações estavam
a descer desde 7 de Outubro. Pior que isso, os volumes atingiram valores muito grandes.
Num dia negociaram-se 4 milhões de contos, um montante enorme para a época. Este volume
pode parecer pequeno comparado com os actuais (cerca de 10 vezes maiores desde 1998 até
agora) mas é preciso ver que agora há as empresas privatizadas, com capitais sociais
muito maiores do que os das empresas cotadas em 1987, já houve uma considerável
inflacção desde então para cá e, além disso, há negociação em contínuo, com o
correspondente trading de curto prazo que, naturalmente, contribui para um mais alto
volume diário. Por isso, um volume de 4 milhões de contos, naquele tempo, deve ser
considerado muito alto. Com as cotações nas alturas e a começar a descer, só quem não
estivesse atento é que não interpretava correctamente o forte sinal de venda técnico.
Mas, naquela época, quase ninguém usava computadores e análise técnica...
Os dias entre 7 e 15 de Outubro têm uma importância muito grande, não apenas para a
Bolsa, mas para todo o tecido social do país. São os dias em que enormes fortunas são
feitas e milhares de pessoas são levadas à ruína. É uma escandalosa passagem de
riqueza dos pobres para os ricos, como bem observou, nessa altura, o indignado (e
estudioso atento da Bolsa) António Guterres, em entrevista à televisão.
(Anterior: 1983 a 1986 - Ascensão Sustentada de
uma Mini-Bolsa)
(Seguinte: Outubro de 1987 a Outubro de 1988 - O
Maior Crash da Bolsa Nacional)
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